"No", e tudo muda.



O filme incomoda. Esta foi a sensação ao final. Não sabia dizer o que sentia, mas durante a sessão alguns sobressaltos na cadeira e lágrimas contidas apareceram. O prazer da vitória  era o de menos e tudo ao mesmo tempo. Fiquei um parada na porta do cinema até tomar o caminho de casa.

Tinha acabado de assistir ao filme "No",  do chileno Pablo Larraín, seguindo a indicação do meu amigo cinéfilo, Luiz, que tem me orientado numa cinematografia deslumbrante de diversas épocas e cineastas. Sabia apenas que tratava-se da campanha publicitária feita no Chile, em 1988, para o plebiscito pela permanência, ou não, da ditadura de Pinochet.

Pipoquinha na entrada da sessão de uma segunda à tarde, chuvosa, e cadeira no lugar ideal para ver a tela sem interferências. A  sessão começou enquanto eu tentava desligar o celular que estava dentro da bolsa e percebi que a imagem estava estranha. Pensei: projeção com problemas, pena. Granulada? Sem foco? Vim com os óculos errados? Não...

A sequência inicial situa o filme e, na confusão do celular, só li que Piniochet, pressionado pela opinião internacional, já que vários países da América Latina  estavam em transição para a democracia, inclusive o Brasil, convocara um plebiscito para referendar seu "mandato" por mais 8 anos.  As legendas do filme diziam, resumindo, que "a oposição, teria apenas 15 minutos" e que o programa seria em um horário tarde da noite, pra ninguém assistir.
Encontrei e desliguei o celular.

A projeção continuava "sem qualidade" e o roteiro só me envolvia. O jovem publicitário, René Saavedra (Gael Garcia Bernal) , não queria envolver-se com a "guerra" política, tinha motivos suficientes. Chegando do exílio no México, com uma carreira promissora, um filho pequeno que cuidava sozinho porque a mãe, militante, vivia perseguida pela polícia da ditadura, foi "convencido" a fazer a campanha publicitária adversária à de Pinichet. As duas campanhas eram produzidas na mesma agência onde trabalhava Saavedra.  O grupo político opositor ao ditador, o centro, a esquerda, a Igreja e toda a oposição chilena estava representada pelo grupo que o convenceu . A campanha de Pinochet estava nas mãos do chefe de Saavedra, da mesma agência.
Imagens do ataque ao palácio de La Moneda, sede do governo, que em 1973 era exercido pelo presidente eleito Salvador Allende e que foi bombardeado no Golpe, as pancadarias nas ruas, as prisões, o Estádio  Nacional do Chile (ver postagem anterior), todas imagens históricas, se confundiam com a "qualidade da projeção". Aquelas eram reais, eu sabia. A pipoca já não tinha gosto e tudo era muito familiar. 


No roteiro do filme a preparação e execução das cenas do filme publicitário para o "No" estavam em várias cenas e, então, percebi que a direção de arte do filme me remetia, com sua criação simples e  precisa, aos anos 80. Os equipamentos de filmagem que os publicitários  usavam no filme, nós usávamos na mesma época em produções brasileiras para televisão. As câmeras, os refletores, os gravadores ( U-Matic!) e... os figurinos, maquiagem, cabelos. A qualidade da imagem transmitida na época era muito próxima à do filme. Pronto, eu já estava imersa.

A campanha política começa e todos os meandros da "venda" e "compra" do "produto" são discutidos pelo roteiro. Qual objetivo, como chegar ao objetivo, quais os riscos, como "criar" e em que condições, quais as intenções e propósitos da campanha que já nasceu derrotada. Daí por diante foi a surpresa. O que é uma campanha de marketing político.


O que uma campanha publicitária pode fazer, nós, do mundo ocidental, sabemos porque  convivemos ininterruptamente com este poderio e nem nos damos conta de como ele interfere na nossa personalidade e, porque não dizer, na nossa cultura, distorcendo as realidades e os saberes. Em 2012 fui contratada por uma agência de marketing para fazer jornalismo em uma campanha política numa cidade do Brasil. Parecia que, de outra maneira, o filme me contava o que nós havíamos feito naquele trabalho que era extremamente novo em minha carreira. Foi como se eu olhasse de fora e confirmasse minhas impressões durante a campanha.

Construir um candidato para a mídia, para o eleitor, é uma arte e o resultado é um produto. Seja quem seja o candidato. "No" fala de uma campanha de esquerda, no interior de um regime ditatorial, neoliberal, que vendia o bem público assumidamente,  desumano com todos aqueles que não eram a seu favor. Fala, também, de como soltar uma vontade reprimida numa grande parcela da população de um país através de uma campanha recebida como derrotada.  As "estatísticas" indicavam uma vantagem segura da ditadura no pleito. A própria esquerda duvidava da vitória. Os jogos inescrupulosos e as ameaças durante a campanha, as perseguições, o desespero de quem não tem talento e começa a perder o jogo tudo está no roteiro que mistura suspense, drama e humor.
Claro que o povo chileno foi aguerrido e estava reprimido mas não se entregava. Claro, também, que não foi só a oportunidade e as condições dadas pelo plebiscito para dizer "Não" aos desmandos de Pinochet que determinaram o final da ditadura, mas sim o resultado de um trabalho duríssimo de resistência, denúncias, mortes e prisões, que ocorriam ainda no final da década de 80, clandestinamente e com força no Chile.  Mas assistir como uma campanha publicitária ajudou mudar a história daquele pais, eu não esperava. Este é o propósito do filme.

Artigo sobre o movimento que levou à vitória o "No."  -  25/02/2013


Filme da campanha do "Não" no Chile, 1988.

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